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Falar em línguas é a evidência do batismo no Espírito?

O pentecostalismo sustenta a tese de que o falar em línguas é a evidência física inicial do batismo com o Espírito. Sendo assim, a única forma de uma pessoa identificar se foi batizada com o Espírito é se essa experiência foi acompanhada pelo falar em línguas. 

A doutrina da evidência inicial fundamenta-se na tese de que Lucas, ao registrar em Atos certas ocorrências sobre o recebimento do Espírito, não estava apenas narrando fatos, mas por meio das narrativas estava ensinando a existência de um padrão para a experiência do batismo com o Espírito. E esse padrão seria marcado pela evidência do falar em línguas.

Há pelo menos três narrativas de Atos em que as línguas são claramente associadas ao batismo com o Espírito: o Pentecostes (Atos 2), a conversão de Cornélio e sua família (Atos 10 e 11) e a experiência dos crentes em Éfeso (Atos 19). 

O caso de Cornélio e sua família é particularmente representativo, pois ali nos é dito que Pedro identificou que o Espírito havia sido derramado pois os ouvia “falando em línguas e engrandecendo a Deus” (Atos 10:45,46). É possível que a expressão “engrandecendo a Deus” se refira ao conteúdo das línguas (como as línguas no Pentecostes falavam das grandezas de Deus – Atos 2:11) ou a algo que aconteceu paralelamente à manifestação das línguas. Contudo, Atos 11:15 não deixa dúvidas de que a atenção de Pedro foi despertada pelo fato de ter visto na casa de Cornélio a mesma experiência do Pentecostes:“Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre eles, como também sobre nós, no princípio”.

Sobre o caso dos crentes em Éfeso, vemos que, ao receberem o Espírito Santo, eles “tanto falavam em línguas como profetizavam” (Atos 19:6). Como o texto não diz “enquanto uns falavam em línguas, outros profetizaram”, podemos supor que todos ali tiveram ambas as experiências.

O que há em comum no Pentecostes, na casa de Cornélio e em Éfeso é o batismo com o Espírito acompanhado pelo falar em línguas. Nas outras duas narrativas de Atos (Samaritanos e Paulo), não há registro da manifestação de línguas, mas é possível que tenha ocorrido. Em Samaria aconteceu algo muito perceptível aos que observavam, a ponto de Simão querer comprar o poder de impor as mãos para que as pessoas recebessem o Espírito. Já no caso de Paulo, embora nada é dito sobre qualquer manifestação, sabemos que em algum momento de sua jornada o apóstolo teve a experiência do falar em línguas (I Coríntios 14:18). Portanto, pode-se supor que essa experiência teria ocorrido quando foi cheio do Espírito em Atos 9:17,18.

Se contássemos exclusivamente com Atos, poderíamos inferir que as línguas seriam o sinal inevitável do batismo com o Espírito. Sendo o batismo com o Espírito uma experiência normativa para todo o cristão (Atos 2:38), então a evidência do falar em línguas também seria normativa para todos.

Entretanto, o fenômeno das línguas não é restrito ao livro de Atos, pois também aparece I Coríntios, onde Paulo o menciona entre os diversos dons (charismata) do Espírito, ainda que seja um dom marcado por particularidades. 

Em geral, os dons do Espírito são dados para a edificação da igreja. Entretanto, quem fala em línguas não fala aos homens, pois ninguém o entende,  mas a Deus, e em espírito fala mistérios (I Coríntios 14:2). Quando uma pessoa ora em línguas, o seu espírito ora de fato, mas a igreja só recebe edificação se as línguas forem interpretadas (I Coríntios 14:5,13-17).

Ao falar sobre as diversidade da obra do Espírito e as diferenças entre os membros do Corpo de Cristo, Paulo pergunta: “Falam todos em outras línguas?”. A resposta seguramente é não, da mesma forma que nem todos são apóstolos, ou profetas, ou mestres, ou operadores de milagres (I Coríntios 12:7-11, 27-30). Além disso, ao dizer “Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis” (I Coríntios 14:5), Paulo reconhece o valor das línguas, mas também assume que nem todos ali em Corinto tinham esse dom. Até mesmo porque, apesar de podermos buscar os dons (I Coríntios 12:31; 14:1), sua distribuição é feita pelo Espírito conforme lhe apraz (I Coríntios 12:11). Como Paulo escreve: “Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve” (I Coríntios 12:18).

Diante disso, como conciliar a tese de que as línguas são sempre a evidência do batismo no Espírito com o fato de que Paulo parece tratar com naturalidade que nem todos falem em línguas?

O pentecostalismo estabelece uma distinção entre as línguas como sinal do batismo no Espírito (línguas evidenciais) e as línguas como um dom espiritual (variedade de línguas). Embora nem todos falem em língua como um dom, todos os que são batizados com o Espírito manifestariam as línguas evidenciais, ainda que esse fenômeno venha a ocorrer uma única vez.

No entanto, a distinção entre línguas como sinal e línguas como um dom não é apresentada em nenhum lugar do Novo Testamento. Inclusive, no início do movimento pentecostal, essa distinção não foi aceita por todos. F. F. Bosworth (1877-1958) foi um dos mais conhecidos líderes pentecostais a rejeitar a doutrina da evidência física inicial. Tendo participado da fundação das Assembleias de Deus nos Estados Unidos em 1914, Bosworth começou a contestar a distinção entre as línguas de Atos e as línguas de I Coríntios, afirmando que ambos os livros tratam do dom de línguas, e que estas não seriam a única evidência do batismo com o Espírito. Tal posicionamento fez com que F. F. Bosworth se desligasse das Assembleias de Deus em 1918.

A questão sobre evidência inicial não envolve apenas uma discussão teológica, mas diz respeito a uma importante questão pastoral. Por muitas vezes o pentecostalismo é acusado de classificar os cristãos em duas categorias: os que falam em línguas e os que não falam, os quais seriam “cristão de segunda classe”. Considerando que muitos membros de igrejas pentecostais não falam em línguas, a doutrina da evidência inicial favoreceria um tipo de “elitismo espiritual”, pois os que falam em línguas são considerados como batizados com o Espírito, enquanto os que não falam em línguas (e que talvez nunca falem, se as línguas forem apenas um dom) seriam classificados como não-batizados com o Espírito, não importando quão intensas ou surpreendentes sejam suas experiências com o Espírito Santo. Enquanto não falarem em línguas, essas pessoas não serão consideradas batizadas com o Espírito.

Outra questão pastoral importante é fato de que certas pessoas, mesmo não falando em línguas, parecem contar com o poder para testemunhar concedido pelo batismo com o Espírito. Isso é observado pelo teólogo pentecostal Robert P. Menzies, que admite a possibilidade de que cristãos que não falam em línguas experimentem, em graus variados, o poder pentecostal. Entretanto, para Robert P. Menzies, a experiência completa do poder pentecostal inclui necessariamente o falar em línguas. 

Ao responder se é possível uma pessoa ser batizada com o Espírito sem falar em línguas, Menzies declara: “Talvez. Mas por que nos contentaríamos com menos do que a experiência apostólica completa?”. No entanto, tal comentário reflete a dificuldade da teologia pentecostal de provar cabalmente que o batismo com o Espírito sempre é evidenciado pelas línguas. Afinal, como um autor escreve uma obra para defender a doutrina pentecostal da evidência física inicial, mas no mesmo livro cogita a possibilidade de alguém ser batizado com o Espírito sem falar em línguas? Essa dificuldade se assenta no fato de que não há nenhum ensino claro no Novo Testamento que estabeleça de forma inquestionável a relação entre as línguas e o batismo com o Espírito.

Além disso, existem testemunhos de cristãos que alegam ter experimentado o batismo com o Espírito Santo sem falar em línguas, ou só falaram algum tempo depois.

Há ainda uma última questão pastoral apontada inclusive por autores pentecostais: o risco da evidência inicial se tornar mais importante do que o propósito do batismo com o Espírito. O revestimento de poder tem como propósito o testemunho, e não o falar em línguas, que seria apenas um sinal de que você foi revestido. 

A “super-valorização” do falar em línguas foi denunciada por William J. Seymour (1870-1922), pioneiro pentecostal e líder do conhecido Reavivamento da Rua Azusa, em Los Angeles. Para Seymour, quem colocava o foco em buscar as manifestações, em lugar de buscar o próprio Senhor, estaria propenso a falsificações. Ele mesmo abandonou a doutrina das línguas como evidência física inicial, dizendo que tal doutrina abria a porta para enganos e que deixava a Palavra de Deus para instituir um ensinamento humano. Seymour não negou a contemporaneidade ou o valor das línguas, mas não mais concebia esse fenômeno como único sinal que atestava a experiência do batismo com o Espírito Santo.

Apesar das críticas feitas à doutrina da evidência física inicial, é necessário que admitir que multidões, dentro e fora do pentecostalismo, tem recebido o batismo com o Espírito acompanhado pelo falar em línguas. Essa, inclusive foi a minha experiência, quando eu nem mesmo acreditava no batismo com o Espírito como experiência distinta da regeneração. Entretanto, como nosso critério para avaliarmos todas as coisas são as Escrituras, precisamos conferir se a doutrina da evidência física inicial encontra sustento sólido nelas.

Antes de chegarmos a uma resposta sobre a evidência inicial, proponho uma reflexão sobre os seguintes pontos:

  1. Pedro fundamenta a experiência do Pentecostes na profecia de Joel que afirma que todo o povo de Deus receberia capacitação profética (em diferentes aspectos: sonhos, visões e profecia). Já abordamos no segundo capítulo deste livro que as línguas de Atos 2 podem ser entendidas como um tipo de profecia, pois foi um discurso inspirado pelo Espírito e não eram línguas estranhas para quem as compreendia. Entretanto, considerando que Joel fala sobre diferentes aspectos da atividade profética, por que o cumprimento dessa promessa necessariamente seria evidenciado apenas e exclusivamente pelo falar em línguas?
  2. Jesus descreve o batismo com o Espírito como um revestimento de poder para testemunhar (Lucas 24:49; Atos 1:8). Tendo em vista o propósito do batismo com o Espírito, será que esse poder só é concedido por meio de uma experiência que necessariamente inclui o falar em línguas? Não haveriam outras experiências com o Espírito que cumpririam esse propósito de conferir poder para testemunhar?
  3. Há certos pontos das narrativas de Atos que devem ser observados: não há registro da manifestação que acompanhou a experiência dos samaritanos (Atos 8) e a de Paulo (Atos 9); na casa de Cornélio, as pessoas estavam “falando em línguas e engrandecendo a Deus” (Atos 10:46); e em Éfeso os discípulos “tanto falavam em línguas como profetizavam” (Atos 19:6). A falta de registro de manifestações em duas narrativas, e o acréscimo de detalhes em outras duas, não seriam indícios de que Lucas concebia outras evidências do batismo com o Espírito, além do falar em línguas?
  4. Ao tratar do dom de línguas, Paulo deixa claro que esse é um dom com muitas particularidades, posto que, sem interpretação, não cumpre o papel de edificar a igreja, mas edifica apenas aquele que exerce o dom. Estando o falar em línguas tão marcado por particularidades, se houvesse ainda uma outra manifestação mais específica desse fenômeno, como sinal do batismo com o Espírito, não faria sentido que Paulo desse alguma explicação sobre isso?
  5. Em I Coríntios 12:1-7, Paulo escreve sobre a diversidade dos dons, dos serviços e das realizações do Espírito. Considerando que a obra do Espírito é tão variada, poderíamos dizer taxativamente que existe uma única evidência para o recebimento do batismo com o Espírito Santo?
  6. Por fim, na história e na atualidade sabemos de muitos cristãos que derem testemunho do Evangelho com poder, mas não falaram em línguas. Houve grandes avivamentos nos quais não há registro da manifestação do falar em línguas. Além disso, muitos homens de Deus não tiveram essa experiência. Será que poderíamos dizer que essas pessoas não foram batizadas com o Espírito?

Não podemos fugir do fato de que Atos apresenta o fenômeno das línguas como algo que comumente acompanha do batismo com o Espírito. Não deveríamos nos surpreender pelo fato de que muitas pessoas, ao serem batizadas com o Espírito, manifestam o falar em línguas. Entretanto, considerando todos os pontos levantados acima, e lembrando que o batismo com o Espírito é uma capacitação para a missão, podemos concluir que outras experiências podem servir a esse propósito, como a profecia, as visões ou o irromper em louvores. Não há amparo bíblico suficiente para dizermos que as línguas são a única evidência de que uma pessoa foi batizada com o Espírito.

Extraído do livro “O Batismo com o Espírito Santo”.
Autor: Anderson Paz
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