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“O divórcio, a lei e Jesus” – o equívoco de Walter L. Callison

O texto “O divórcio, a lei e Jesus”, escrito por Walter L. Callison, pode ser encontrado em diversos sites. Foi publicado como apêndice no livro “Quando o vínculo se rompe” de Esly Regina de Carvalho (Editora Ultimato). Em síntese, ao abordar o polêmico tema do divórcio, o autor formula uma posição apoiando-se na diferença entre a palavra repúdio (no grego, apoluo) e divórcio (no grego, apostasion).

Para Walter L. Callison, Jesus condenou o repúdio e não o divórcio. Em outros termos, Jesus reprova a pessoa que abandona ou rejeita o seu cônjuge mas não o libera pelo divórcio, que é o corte do vínculo conjugal. Para entendermos melhor essa questão, vejamos como Jesus tratou o tema do divórcio e do repúdio no Sermão do Monte, onde ensinou sobre o tema espontaneamente, e em sua conversa com os fariseus em Mateus 19.

“Também foi dito: Aquele que repudiar [apoluo] sua mulher, dê-lhe carta de divórcio [biblion apostasion]. Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar [apoluo] sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 5:31,32 RA).

“Vieram a ele alguns fariseus e o experimentavam, perguntando: É lícito ao marido repudiar [apoluo] a sua mulher por qualquer motivo? Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. Replicaram-lhe: Por que mandou, então, Moisés dar carta de divórcio [biblion apostasion] e repudiar [apoluo]? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar [apoluo] vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo: quem repudiar [apoluo] sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério e o que casar com a repudiada comete adultério. Disseram-lhe os discípulos: Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar. Jesus, porém, lhes respondeu: Nem todos são aptos para receber este conceito, mas apenas aqueles a quem é dado” (Mateus 19:3:11).

A palavra grega traduzida como “repudiar” é apoluo, que tem um significado amplo, que inclui deixar ir, despedir, mandar embora, rejeitar, desprezar. Em Mateus 14:15, por exemplo, quando os discípulos pedem para Jesus despedir a multidão, o verbo que aparece é apoluo, que nesse contexto não pode significar rejeição ou desprezo, mas simplesmente despedir, ou liberar a multidão. 

Portanto, em Mateus 5:31, Jesus fala sobre o que foi dito aos antigos (“Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio”), ele estava fazendo uma referência a uma regulamentação da Lei de Moisés que estabelecia que um homem ao despedir sua esposa, deveria dar a ela carta de divórcio, documento que atestava o corte do vínculo conjugal e liberava a mulher até mesmo para um novo casamento, guardando-a de ser acusada de um adultério. Essa regulamentação está em Deuteronômio 24:1-4:

“Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir [no hebraico, shalach] de casa; e se ela, saindo da sua casa, for e se casar com outro homem; e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir [shalach] da sua casa ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, então, seu primeiro marido, que a despediu [shalach], não poderá tornar a desposá-la para que seja sua mulher, depois que foi contaminada, pois é abominação perante o SENHOR; assim, não farás pecar a terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança” (Deuteronômio 24:1-4, RA).

A palavra hebraica para despedir é shalach, que equivale a palavra grega apoluo. Shalach é a palavra usada para dizer que Adão e Eva foram lançados fora do Éden (Gênesis 3:22,23) e também é usada em textos como Deuteronômio 21:14 (caso em que o marido deveria despedir sua esposa); 22:19 e 29 (casos em que o homem ficaria proibido de despedir sua esposa); e Malaquias 2:16 (onde é dito que Deus odeia o repúdio). A palavra shalach também aparece em Isaías 50:1-2 e Jeremias 3:1 e 8, textos onde o Senhor usa como ilustração a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4 para falar de Sua relação com Israel.

“Assim diz o SENHOR: Onde está a carta de divórcio de vossa mãe, pela qual eu a repudiei [shalach]? Ou quem é o meu credor, a quem eu vos tenha vendido? Eis que por causa das vossas iniquidades é que fostes vendidos, e por causa das vossas transgressões vossa mãe foi repudiada” (Isaías 50:1).

“Se um homem repudiar [shalach]  sua mulher, e ela o deixar e tomar outro marido, porventura, aquele tornará a ela? Não se poluiria com isso de todo aquela terra? Ora, tu te prostituíste com muitos amantes; mas, ainda assim, torna para mim, diz o SENHOR. … Quando, por causa de tudo isto, por ter cometido adultério, eu despedi [shalach] a pérfida Israel e lhe dei carta de divórcio, vi que a falsa Judá, sua irmã, não temeu; mas ela mesma se foi e se deu à prostituição” (Jeremias 3:1 e 8).

A tradição judaica havia resumido a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4 na frase “Quem repudiar a sua mulher, dê-lhe carta de divórcio”, como se Moisés tivesse determinado um procedimento para o repúdio. Em outras palavras, compreendia-se que o homem que repudiasse (despedisse) sua esposa, não poderia fazer isso de qualquer maneira, mas tinha que observar uma ordem:

  1. deveria emitir carta de divórcio,
  2. entregar à mulher,
  3. para só então despedi-la.

Não vamos entrar aqui no tem a do que seria a causa para o repúdio, mas estamos apenas abordando o procedimento para o mesmo. Despedir (repudiar) deveria ser o último passo desse processo, o qual deveria ser precedido por emissão e entrega da carta de divórcio à mulher. Se a mulher fosse repudiada sem carta de divórcio, e casasse com outro, seria tida por adúltera.

Para entendermos melhor a concepção que os judeus tinham acerca desse tema, vejamos essa declaração de Flávio Josefo, historiador judeu do século I:

“Aquele que deseja se divorciar da sua esposa por qualquer motivo (muito comum os homens), deve registrar por escrito que nunca mais voltará a se casar com essa mulher. Portanto, ela terá liberdade de se casar com outro homem. Entretanto, enquanto essa carta de divórcio não lhe for dada ela não poderá se casar”.

Baseado na diferença entre repúdio e divórcio, Walter L. Callison defende que Jesus condenou apenas o repúdio sem a carta de divórcio, pois sem esse documento a mulher repudiada ficaria amarrada ao marido enquanto ela viver. Nas palavras do referido autor:

“A diferença entre ‘repudiar’ e ‘divorciar’ (no grego apoluo e apostasion) é crítica. Apoluo indicava que a mulher era escrava, repudiada, sem direitos, sem recursos, roubada em seus direitos básicos ao casamento monogâmico. Apostasion significava que o casamento terminava, sendo permitido um casamento legal subseqüente”.

Para Walter L. Callison, Jesus teria dito que a mulher repudiada ao casar de novo comete adultério pelo fato dela ter sido repudiada sem a carta de divórcio. Se o repúdio fosse com a carta de divórcio, o segundo casamento dessa mulher não seria adultério. Em outras palavras, o ensino de Jesus sobre repúdio e divórcio nada mais seria do que uma reafirmação do que já estava na Lei.

Entretanto, o pensamento desse autor traz consigo um gravíssimo equívoco. E para demonstrar isso, reproduzimos abaixo cinco pontos sobre essa corrente de pensamento que são abordados no livro “Casamento, Imoralidade Sexual e Divórcio”, de Sérgio Franco (lançamento previsto para novembro de 2016).

Vejamos abaixo:

Alguns autores tentam se apoiar na diferença entre as palavras gregas para repúdio (apoluo) e divórcio (apostasion) para sustentar o equívoco de que Jesus condenou o repúdio e não o divórcio. Para quem defende esse engano, Jesus apenas condenou o homem que rejeita a sua mulher e não a libera pelo divórcio, mantendo-a subjugada, cativa. Porém, isso é uma grande distorção do que Jesus ensinou. Há pelo menos cinco razões para esse pensamento ser um engano:

a) Na conversa entre Jesus e os fariseus, estes perguntam: “Por que mandou, então, Moisés, dar carta de divórcio (apostasion) e repudiar (apoluo)?” (Mateus 19:7). “Tornaram eles: Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e repudiar” (Marcos 10:4). O contexto mostra nitidamente que o repúdio tratado em Mateus 19 e Marcos 10 é o repúdio consumado na carta de divórcio. Segundo Deuteronômio 24, o procedimento para o repúdio se dava em três passos: escrever carta de divórcio, entregar à mulher e despedi-la, ou seja, repudiá-la. Já vimos que a palavra apoluo pode ser traduzida como “despedir”, “expulsar” ou “mandar embora”. Portanto, o que os fariseus estão perguntando é sobre despedir ou mandar embora a esposa com a carta de divórcio. O tema é o repúdio com divórcio, e não a repúdio sem o divórcio. É claro que Jesus reprova o repúdio sem carta de divórcio, tanto quanto também reprova o repúdio concretizado no divórcio. … a única exceção para o divórcio é no caso da prática de imoralidade sexual por um dos cônjuges sem arrependimento.

b) Jesus diz “…e o que casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 5:32 e 19:9; Lucas 16:18). Ora, se Jesus fala sobre o segundo casamento da repudiada, certamente ele está falando de uma mulher repudiada munida da carta de divórcio. Do contrário, ela não casaria com outro homem. Como já vimos anteriormente, sob a lei de Moisés, a carta de divórcio era o que permitia à mulher ter um novo casamento. Por isso, claramente Jesus está tratando sobre o repúdio consumado no divórcio.

c) Se Jesus estivesse apenas reprovando o homem que repudia sua esposa sem carta de divórcio, a reação dos discípulos ficaria totalmente sem sentido: “Disseram-lhe os discípulos: Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar” (Mateus 19:10). Os discípulos se surpreenderam com o ensino de Jesus sobre a condição do homem. Ele falou algo novo, inusitado para eles, a ponto de fazê-los pensar que não valia a pena casar. Ora, se Jesus aprovasse o repúdio desde que fosse dada carta de divórcio, os discípulos não ficariam surpresos pela condição do homem em relação à sua mulher, pois isso já era previsto na Lei, e as escolas rabínicas não discutiam o procedimento para o repúdio, e sim os motivos.

d) Se entendêssemos que Jesus condenou apenas o repúdio sem carta de divórcio, a cláusula de exceção de Mateus 19:9 ficaria totalmente sem sentido. Vejamos as consequências dessa interpretação sobre o texto de Mateus 19:9: “Quem repudiar sua mulher [sem dar carta de divórcio], não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério”. Nessa situação, o homem que repudia [sem dar carta de divórcio], por causa de relações sexuais ilícitas, manteria a mulher presa a ele, e ainda poderia casar com outra sem incorrer em pecado. Em outras palavras, Jesus estaria dizendo que a mulher que caiu em imoralidade sexual poderia ser repudiada sem ser liberada pelo divórcio, ficando presa ao marido. E este, por sua vez, ainda poderia casar de novo sem incorrer em adultério. Isso é um verdadeiro absurdo! Ao adotar certa interpretação precisamos pensar em todas as suas consequências e reflexos sobre o ensino bíblico.

e) Entender que Jesus reprovou apenas o repúdio sem o divórcio é se opor frontalmente a todo o ensino do Novo Testamento sobre o tema. Jesus é claro em dizer que o que Deus uniu não deve ser separado pelo homem. Ora, o divórcio é um corte do vínculo conjugal, logo seu efeito é a separação. Não faria sentido algum Jesus reprovar a separação, para depois dizer que um homem pode repudiar sua esposa desde que a libere pelo divórcio (que é uma separação). Em regra, o repúdio, seja escrito ou falado, com ou sem carta de divórcio, é reprovado por Jesus.

Defender o divórcio por qualquer razão é pecar contra o Senhor e dar sustentação para muitos adultérios. Um casamento não pode ser desfeito sob desculpas como a incompatibilidade de gênios ou porque “o amor acabou”. Jesus só menciona uma única exceção para o divórcio. Infelizmente, em nome de doutrinas humanas, muitos pecados têm sido alimentados em meio à Igreja. Que o nosso coração se encha de temor a Deus e de fidelidade à Sua Palavra.

O ponto “d”, mencionado por Sérgio Franco no texto acima, é o que mais destaca as incoerências desse pensamento defendido por Walter L. Callison. No Sermão da Montanha, em Mateus 5:32, Jesus declara que o homem que repudia sua mulher, exceto por causa de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera. A palavra grega traduzida como “relações sexuais ilícitas é porneia. Porém, no Sermão do Monte não é dito nada sobre o adultério do homem que repudia sua mulher. Esse tema só é abordado em Mateus 19:9, onde é dito que aquele que repudiar sua mulher, exceto por causa de porneia, comete adultério. Esse adultério é configurado pelo cumprimento de suas condições: 1 – repúdio, exceto por causa de porneia; 2 – segundo casamento. Quando essas duas condições são preenchidas, há um adultério. Só fica excluído da condição de adúltero aquele que que repudia por causa de relações sexuais ilícitas e casa com outra. Se entendermos que o repúdio condenado por Jesus não trazia consigo o divórcio (corte do vínculo conjugal), teríamos que concluir o absurdo de que um homem poderia repudiar sua mulher por causa de porneia, não se divorciar, mantendo intacto o vínculo conjugal, e ainda assim casar com outra sem cometer adultério. Ficaria assim configurado um caso de bigamia.

Ao adotarmos certa interpretação, devemos ter o cuidado de analisarmos suas implicações em todo o ensino bíblico sobre o tema. E devemos fazer isso com temor e tremor, pois estamos diante da Palavra de Deus. Não podemos ser irresponsáveis ao ensinar os mandamentos do Senhor.

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