Ensino

Vasos de ira e vasos de misericórdia

A referência que Paulo faz aos vasos de ira e aos vasos de misericórdia tem sido objeto de inúmeras discussões. Afinal, o que o apóstolo quis dizer em Romanos 9:20-23?

Uma leitura descuidada pode nos dar a impressão de que algumas pessoas são criadas por Deus para a perdição, de forma incondicional, sem que Ele considere qualquer atitude ou escolha dessas pessoas. Sob essa ótica, se alguém foi criado para ser um vaso de ira, não haveria nada a ser feito para mudar o seu destino pré-determinado. A figura do vaso, um objeto inanimado, desprovido de vontade, pode gerar a impressão de que o destino de cada pessoa é determinado de forma incondicional por Deus. Porém, isso é um equívoco.

Estou convencido de que o apóstolo não usou a figura dos vasos de ira para dizer que Deus criou pessoas com o fim de condená-las para a perdição. Na verdade, Deus decidiu usar sua misericórdia para com todos (Romanos 11:32).

Abaixo explicarei as razões para o meu posicionamento. Mas, antes de tudo, vejamos o texto em questão:

“Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? 
Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? 
Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição,
a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão”
(Romanos 9:20-23).

Seguem abaixo algumas considerações sobre a referência que Paulo faz aos vasos da ira e vasos de misericórdia. Ao fim, apresentarei minha conclusão.

1) A maior parte das Escrituras é de fácil compreensão. Se assim não o fosse, a Bíblia só seria entendida por grandes estudiosos. Contudo, até uma criança pode saber as sagradas letras: “desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (II Timóteo 3:15).

2) O fato de que a maior parte das Escrituras seja de fácil compreensão, não elimina a verdade de que há alguns textos mais complexos. Isso é reconhecido por Pedro que, ao fazer referência às cartas de Paulo, reconheceu que nelas havia certas coisas difíceis de entender, “… que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (II Pedro 3:15,16).

3) Não sabemos exatamente que textos de Paulo eram considerados “difíceis de entender” por Pedro, mas isso já é suficiente para não nos colocarmos diante certos textos, especialmente os que tratam de temas polêmicos, e darmos interpretações simplistas.

4) A fala de Paulo sobre os vasos de ira e os vasos de misericórdia é inserida em um contexto que trata de um tema sensível: a aliança da Deus com Israel. Toda a argumentação que o apóstolo começa a desenvolver em Romanos 9 e conclui em Romanos 11 é para mostrar que a justificação pela fé tanto de judeus quanto de gentios não implica infidelidade de Deus em relação a Israel. Portanto, o propósito principal de Paulo em Romanos 9 ao 11 não é falar sobre a salvação de indivíduos.

5) Ao buscarmos a fundamentação de qualquer doutrina, devemos dar atenção aos textos cujos contextos tratam explicitamente da referida doutrina. Versículos isolados que parecem tratar de um assunto não podem ser valorizados a ponto de ignorarmos textos escritos com a intenção clara de abordar o tema. Sendo assim, o capítulo 5 de Romanos se ocupa em tratar da extensão do pecado e do alcance da misericórdia de Deus. E nesse contexto, Paulo é muito claro. A  graça de Deus, que possibilita a justificação, se estende a todos homens:

“Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. … Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida (Romanos 5:12,18).

6) Retornando para Romanos 9, vemos que o tema ali desenvolvido só é concluído em Romanos 11, onde o apóstolo afirma claramente: “Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Romanos 11:32). A extensão da misericórdia alcança todos os que foram encerrados debaixo da desobediência. Portanto, a referência aos vasos de ira não pode ser interpretada de modo que nos leve a uma conclusão diferente da que o apóstolo chegou. E a conclusão de Paulo é que Deus decidiu usar misericórdia para com todos.

7) Para falarmos sobre os vasos de ira precisamos ir aos textos que tratam da ira de Deus. Em Romanos 2, por exemplo, Paulo está escrevendo a um interlocutor hipotético, a um homem que pratica as mesmas coisas que condena. Paulo afirma que tal homem desprezava a paciência de Deus e ignorava que a bondade do Senhor o conduzia ao arrependimento. Por ter um coração duro e impenitente, essa pessoa estava acumulando ira de Deus contra si mesma. Sendo assim, sua condenação não se daria por falta da bondade ou de paciência da parte do Senhor, mas como resultado de suas atitudes.  A ira de Deus não recai de forma incondicional e arbitrária sobre uma pessoa, mas sim por causa de suas escolhas pecaminosas.

“Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. 
Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra os que praticam tais coisas.
Tu, ó homem, que condenas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus?
Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?
Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, 
que retribuirá a cada um segundo o seu procedimento:
a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade;
mas ira e indignação aos facciosos, que desobedecem à verdade e obedecem à injustiça.
Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego;
glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego.
Porque para com Deus não há acepção de pessoas (Romanos 2:1-11).

Esse texto nos dá motivos suficiente para concluirmos que os vasos de ira não são preparados para a perdição de forma incondicional, sem que suas escolhas sejam consideradas. Ao desprezarem a bondade de Deus, se entregando à pratica do mal, os vasos de ira estão preparados para a perdição, posto que não podem fugir do juízo de Deus. Portanto, antes que Deus considere alguém um vaso de ira, Ele leva em conta as escolhas do homem. Pode ter algumas escolhas livres, mas não podemos determinar as consequências de nossas escolhas.

8) Romanos 1 é um dos capítulos em que Paulo mais se ocupa em escrever sobre a ira de Deus. No versículo 18, o apóstolo afirma que a ira de Deus se manifesta contra a injustiça dos homens. O que torna os homens indesculpáveis é o fato de que, tendo conhecimento de Deus (revelado na criação), não o glorificaram como Deus. Portanto, a ira de Deus não é incondicional, arbitrária ou fatalista.

A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;
porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. 
Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Romanos 1:18-21).

9) Ainda em Romanos 1, vemos o Senhor entregando os homens “à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração”(v. 24). Por terem adorado a criatura no lugar do Criador, “Deus os entregou às paixões infames” (v. 26). Foram entregues a uma “disposição mental reprovável”, por haverem desprezado o conhecimento de Deus (v. 28). Tais ações divinas não foram decretadas de forma incondicional, pois levaram antes em conta a atitude dos homens.

“Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 
e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.
Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si;
pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!
Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza;
semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro.
E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes” (Romanos 1:22-28)

10) Em II Timóteo 2:19-21, Paulo escreve sobre os vasos de honra e de desonra, e afirma que se uma pessoa se purificar de certos erros se tornará um vaso de honra. Assim sendo, o estado de vaso de honra ou de desonra não é determinado incondicionalmente por Deus. O mesmo podemos dizer sobre os vasos de ira e os de misericórdia.

“Todavia o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniqüidade.
Ora, numa grande casa não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para desonra.
De sorte que, se alguém se purificar destas coisas, será vaso para honra, santificado e idóneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra (II Timóteo 2:19-21).

11) No Antigo Testamento, a ilustração do vaso nas mãos do oleiro não é usada para dizer que Deus cria os homens para a perdição ou salvação de forma incondicional. Muito pelo contrário, essa ilustração mostra que o trato do Senhor com o barro leva em conta as atitudes do “barro”, ou seja, do povo. O que essas passagens destacam é a inevitabilidade do trato de Deus, e não afirmam que Deus cria algumas pessoas para o bem e outras para o mal.

Assim como barro não pode resistir ao trato do oleiro, o homem não pode resistir ao juízo de Deus. Quando o povo escolhe o mal, por consequência receberá o devido o juízo. Contudo, quando há arrependimento, Deus pode afastar o juízo. Assim como o oleiro quebra o vaso e o faz de novo, assim o Senhor pode mudar o que havia declarado sobre o seu povo. Sendo assim, vasos de ira e vasos de misericórdia não são moldados sem que suas escolhas sejam consideradas.

“Desci à casa do oleiro, e eis que ele estava entregue à sua obra sobre as rodas. Como o vaso que o oleiro fazia de barro se lhe estragou na mão, tornou a fazer dele outro vaso, segundo bem lhe pareceu. Então, veio a mim a palavra do SENHOR: Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? – diz o SENHOR; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mau perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria. Ora, pois, fala agora aos homens de Judá e aos moradores de Jerusalém, dizendo: Assim diz o SENHOR: Eis que estou forjando mal e formo um plano contra vós outros; convertei-vos, pois, agora, cada um do seu mau proceder e emendai os vossos caminhos e as vossas ações“ (Jeremias 18:3-11).

12) Em Isaías 29:15 e 16, a ilustração do oleiro e do vaso é usada para denunciar a falta de temor daqueles que faziam o mal e pensavam que não prestariam contas a Deus. Em nenhum momento é dito que Deus cria pessoas para fazerem o mal e para a perdição.

“Ai dos que escondem profundamente o seu propósito do SENHOR, e as suas próprias obras fazem às escuras, e dizem: Quem nos vê? Quem nos conhece? Que perversidade a vossa! Como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse do seu artífice: Ele não me fez; e a coisa feita dissesse do seu oleiro: Ele nada sabe” (Isaías 29;15,16)

13) A forma como as Escrituras revelam o caráter de Deus nos impede de pensar que Ele prepara vasos de ira de forma incondicional, preparados arbitrariamente para a perdição. A verdade é que Deus não tem prazer na morte do ímpio, pois quer que este se converta a viva (Ezequiel 33:11).

Conclusão: À luz das considerações acima, podemos constatar que ninguém é criado para ser um vaso de ira incondicionalmente. Pelo contrário, é a resistência do homem à graça de Deus que o faz acumular ira contra si mesmo. O homem escolhe a rebelião contra Deus, mas não tem o poder de evitar as consequências dessas escolhas, pois não pode afastar o juízo. Entretanto, o Senhor é paciente e quer que todos cheguem ao arrependimento, ao pleno conhecimento da verdade (II Pedro 3:9). Vasos de ira podem se tornar vasos de misericórdia.

Em Cristo,
Anderson Paz


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