Reflexões

Poligamia na Bíblia e o casamento hoje

O fato de encontrarmos a poligamia na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, desperta uma série de dúvidas: como os homens podiam ser polígamos e não serem condenados por adultério? A poligamia continua ser permitida no Novo Testamento ou foi proibida por Jesus?

Para trazer esclarecimentos sobre esse tema, reproduzimos abaixo alguns trechos do livro “Casamento, imoralidade sexual e divórcio”.

Poligamia e adultério no Antigo Testamento

Para entendermos qualquer coisa sobre a poligamia na Bíblia, precisamos compreender a condição da mulher no contexto cultural em que foi redigido o Antigo Testamento. Devemos lembrar que as relações sociais eram regidas por um código familiar definido por três pares de relacionamentos: marido e mulher, pai e filho, senhor e escravo. Ninguém ficava fora disso, pois a sociedade era extremamente patriarcal e somente uma pessoa tinha a autoridade absoluta: o pai, o marido e o senhor. Assim, naquela época, o marido seria literalmente o dono de sua esposa. 

É nesse contexto de domínio do homem sobre a mulher que surge a poligamia. A condição da mulher naquela época não condizia com o retrato do casamento descrito no Gênesis, onde vemos tanto o homem quanto a mulher sendo criados à imagem de Deus (Gênesis 1:26,27), uma única mulher feita para um único homem a fim de ser sua auxiliadora idônea. O padrão descrito na Criação é o da monogamia. Entretanto, o pecado distorceu essa realidade.

O primeiro homem de que se tem registro a tomar duas esposas foi Lameque, descendente de Caim (Gênesis 4:19). Parece não ter havido limite para o número de esposas que um homem poderia ter, exceto sua capacidade de mantê-las e seus filhos. De fato, apenas homens de riqueza, chefes ou reis tinham muitas esposas. No  antigo  Oriente  Médio, a poligamia era uma forma de ostentar poder. 

Apesar da poligamia não corresponder ao desenho original do casamento, vemos essa situação sendo regulamentada pela lei, como em Êxodo 21:7-11, Levítico 18:18 e Deuteronômio 21:15-17. Essas regulamentações protegiam a mulher casada com um homem polígamo. Entretanto, não vemos na lei de Moisés qualquer tipo de estímulo ou incentivo ao homem para que tivesse mais de uma esposa. Apesar dos reis terem condições de sustentar muitas mulheres, receberam uma advertência para que não multiplicassem esposas para si (Deuteronômio 17:15-17). 

Sabemos essa advertência não foi observada. A poligamia foi um costume muito comum entre os reis de Israel e de Judá (II Samuel 5:13; I Reis 11:3; II Crônicas 11:21; II Crônicas 21:14; I Reis 20:3; II Crônicas 24:3 etc.).

Aqui surge uma pergunta: A lei dizia “não adulterarás”, mas, se o homem podia ter várias esposas, quando é que ele adulterava? Ele estava isento de cumprir esse mandamento? Certamente não estava isento. Porém, o adultério era definido a partir da situação da mulher envolvida: se era casada ou solteira.

No Antigo Testamento, o adultério é descrito como possuir uma mulher já casada: a mulher do próximo. Portanto, o adultério de um homem era sempre um pecado contra o próximo, e não contra sua própria esposa. Já o adultério de uma mulher era um pecado contra o seu próprio marido. Por isso, se um homem casado tivesse relações sexuais com uma mulher solteira, com escravas, com concubinas ou se até mesmo tivesse outras esposas, ainda assim não seria tido por adúltero, pois tais mulheres não pertenciam a outro homem, e os filhos nascidos dessas relações eram considerados legítimos. Entretanto, uma mulher seria adúltera se tivesse relações com qualquer outro homem que não fosse seu marido, e os filhos dessa relação seriam bastardos (mamzerim).

“Nem te deitarás com a mulher de teu próximo, para te contaminares com ela” (Levítico 18:20).

“O homem que adulterar com a mulher de outro, sim, aquele que adulterar com a mulher do seu próximo, certamente será morto, tanto o adúltero, como a adúltera” (Levítico 20:10).

“Se um homem for encontrado deitado com mulher que tenha marido, morrerão ambos, o homem que se tiver deitado com a mulher, e a mulher. Assim exterminarás o mal de Israel” (Deuteronômio 22:22). 

“Assim será com o que se chegar à mulher do seu próximo; não ficará sem castigo todo aquele que a tocar” (Provérbios 6:29).

O adultério era determinado pelo fato da mulher envolvida estar sob o domínio de um marido. Tal concepção aparece claramente na história de Davi. Seu pecado de adultério foi devido ao fato de Bate-Seba ser esposa de Urias. Se ela fosse uma mulher solteira, Davi poderia casar com ela e assim teria mais uma esposa (II Samuel 12:1-15). 

Abraão se deitou com uma escrava e não foi tido por adúltero (Gênesis 16:1-4). Jacó teve duas esposas e duas concubinas e ainda assim não foi tido por adúltero (Gênesis 29:20-30; 30:1-9). Salomão teve setecentas esposas e trezentas concubinas, e não foi considerado adúltero (I Reis 11:3). Gideão, por ter muitas mulheres, teve setenta filhos, mas não foi considerado adúltero (Júizes 8:30,31). Elcana tinha duas esposas, e não foi adúltero (I Samuel 1:1,2). Em I Crônicas 7:4 nos é dito que os homens da tribo de Issacar tinham muitas mulheres e filhos. E sabemos que Davi adulterou não por ter muitas esposas e concubinas (II Samuel 5:13), mas por ter possuído a mulher de outro homem (II Samuel 12:7-10). Na compreensão da época, o casamento estabelecia um compromisso de exclusividade da mulher para com o seu marido, e não necessariamente o contrário. A mulher era limitada a ter um único marido, mas o homem não era limitado a ter uma única esposa.

A restauração do padrão monogâmico no Novo Testamento

Para compreendermos o ensino de Jesus sobre a poligamia, precisamos nos voltar ao que Ele disse sobre casamento e divórcio, pois ali veremos que o casamento vincula o homem à sua esposa, tanto quanto vincula a esposa ao seu marido, gerando o dever de exclusividade para ambos.

Vejamos o relato de Mateus 19:3-12: 

“Vieram a ele alguns fariseus e o experimentavam, perguntando: É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo? Então, respondeu ele: Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. Replicaram-lhe: Por que mandou, então, Moisés dar carta de divórcio e repudiar? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério e o que casar com a repudiada comete adultério. Disseram-lhe os discípulos: Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar. Jesus, porém, lhes respondeu: Nem todos são aptos para receber este conceito, mas apenas aqueles a quem é dado. Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para o admitir admita”.

O texto de Mateus 19 por vezes é lido com lentes contemporâneas e por isso não é bem compreendido. Alguns leem a pergunta dos fariseus como se eles dissessem: “É lícito se divorciar por qualquer motivo?” Entretanto, a pergunta foi outra: “É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?”. Precisamos lembrar que apenas os homens podiam repudiar suas esposas, não sendo permitido à uma mulher repudiar o seu marido.

Outra coisa que precisamos enxergar é que a pergunta foi sobre os motivos do repúdio e não sobre o novo casamento do homem, pois isso até então não estava em questão. Diferentemente da nossa sociedade atual, onde existe uma proibição legal da bigamia e que se um homem já casado quiser casar com outra mulher deverá se divorciar da primeira, naqueles dias o novo casamento de um homem não estava condicionado ao desfazimento da primeira união.

Muitos homens, ao desejarem casar com outra mulher, se divorciavam de suas esposas por não terem condições financeiras de manter duas mulheres, mas não havia um impedimento legal para que tivesse as duas.

Embora a prática da poligamia tenha diminuído no período após o exílio, ela ainda não havia sido erradicada entre os judeus. Portanto, o debate rabínico sobre os motivos do repúdio não colocava em questão a liberdade do homem de casar-se com outra mulher. Se o repúdio fosse ilícito, a mulher repudiada não poderia casar com outro homem, pois seria acusada de adultério. Mas o homem que a repudiou poderia casar com outra mulher livremente.

Jesus, ao responder à primeira pergunta dos fariseus, não entra no debate sobre o motivo do repúdio e tampouco cita a lei. Começa sua resposta  dizendo: “não tendes lido…”, e assim confirma a autoridade das Escrituras. Ele não recorre a Deuteronômio 24, mas ao livro de Gênesis, ao princípio, a algo anterior e superior à lei, que mostrava o propósito do casamento. 

O plano de Deus para o casamento é o de uma união entre um homem e uma mulher por toda a vida. Em sua resposta, Jesus volta ao Éden e mostra-lhes o padrão de Deus: “o que Deus ajuntou não o separe o homem”. A vontade clara e inquestionável do Senhor é que o homem tenha apenas uma esposa, que a esposa tenha apenas um marido e que o casal viva junto até o final de suas vidas. 

No entanto, aqueles fariseus não se contentaram com a resposta de Jesus. É exatamente neste momento que eles tentam colocá-lo em contradição com Moisés, fazendo uma segunda pergunta: Por que mandou, então, Moisés dar carta de divórcio e repudiar?

Percebe-se que os fariseus não estavam perguntando sobre um repúdio qualquer, um mero abandono ou simples separação. Eles questionaram Jesus sobre o repúdio segundo a regulamentação de Deuteronômio 24:1-4, com a emissão da carta de divórcio.

Jesus afirma que a regulamentação de Moisés em Deuteronômio 24:1-4 não correspondia ao plano de Deus para o casamento, entretanto, tal prática foi permitida em função da dureza do coração dos homens. Se não fosse essa dureza, simplesmente Moisés não teria dado essa concessão.

É importante observar que Jesus não estava censurando Moisés e nem mesmo a lei, mas os destinatários da mesma. O que Moisés regulamentou foi em função dos corações endurecidos.

Portanto, Jesus mostra que a lei não alcançava o padrão estabelecido por Deus na criação, de um casamento monogâmico e indissolúvel. Nesse tema, a lei tinha claramente um caráter transitório. A resposta de Jesus nos faz lembrar o que Paulo escreve em Romanos 8:3 e 4, dizendo que havia coisas impossíveis à lei, visto que estava enferma pela carne.

Nesse diálogo com os fariseus, Jesus expõe seu ensino sobre casamento, repúdio e novo casamento, com impacto direto sobre a poligamia:

“Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete adultério e o que casar com a repudiada comete adultério” (Mateus 19:9).

Enquanto os fariseus perguntaram sobre os motivos para o homem repudiar sua mulher, Jesus foi muito além, mostrando o padrão de Deus para o matrimônio, e tocou no tema do segundo casamento. Ele fala sobre o homem que contrai novas núpcias depois de repudiar sua mulher e declara que esse homem está em adultério, excetuando quem repudiou por causa de porneia. Isso foi algo chocante.

Como já dissemos, o debate entre escolas rabínicas colocava em questão a licitude do motivo do repúdio, o que afetaria a liberdade da mulher para casar de novo. Porém, a ilicitude do repúdio não afetava a questão do novo casamento do homem, até mesmo porque, perante a lei, o homem poderia possuir mais de uma esposa. Entretanto o ensino de Jesus toca na liberdade e na responsabilidade do homem, e diz que o casamento vincula o homem à sua mulher, tanto quanto vincula a mulher ao seu marido. Isso surpreendeu até mesmo os discípulos de Jesus, que disseram: 

“Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar” (Mateus 19:10). 

Os discípulos, acostumados com a posição de domínio do homem, se assustaram com o que Jesus disse. A surpresa deles foi quanto à condição do homem relativamente à sua mulher, e não quanto à condição da mulher em relação ao homem. 

Portanto, segundo Jesus, o adultério não é configurado apenas quando o homem toca na “propriedade” do próximo, mas também é um pecado cometido diretamente contra a própria esposa. Isso é claramente mencionado em Marcos 10:11:

“E ele lhes disse: Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra aquela”.

Quando um homem casado se relaciona sexualmente com outra mulher, seja essa casada ou solteira, ele adultera contra sua própria esposa.  A fala de Jesus não se enquadrava em nenhuma das correntes que discutiam os motivos para o repúdio, pois equiparou a situação entre homens e mulheres no que diz respeito à fidelidade conjugal. 

Jesus mudou totalmente a condição da mulher e também do marido. O homem casado adultera quando se relaciona sexualmente com qualquer mulher que não seja sua esposa. Mais tarde Paulo chega a dizer que o homem não tinha poder sobre seu próprio corpo, e sim a mulher. 

“O marido conceda à esposa o que lhe é devido, e também, semelhantemente, a esposa, ao seu marido. A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim o marido; e também, semelhantemente, o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, e sim a mulher” (I Coríntios 7:3,4).

Aliás, quando Paulo usa o casamento para falar sobre a relação entre Cristo e a Igreja, ele parte do pressuposto de que o casamento é monogâmico, pois Jesus não tem mais de uma noiva.

Deus trouxe de volta aquilo que Ele criou em Gênesis. No princípio era homem e mulher, ou seja, Ele criou uma única mulher para o homem. Nunca foi plano dEle que o homem tivesse muitas esposas. O desejo do Senhor sempre foi que cada marido tivesse sua própria esposa e vice-versa. Não há espaço para a poligamia entre o povo de Deus.

Casamento, imoralidade sexual e divórcio 2

Extraído e adaptado do livro “Casamento, imoralidade sexual e divórcio”
Formato Físico: Loja Servo Livre
Formato e-book: Amazon  e Apple Books.
Autores: Sérgio Franco e Anderson Paz
Editora Apê Criativo

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