Ensino

“Não sejas demasiadamente justo”

“Não sejas demasiadamente justo, nem exageradamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo?”  (Eclesiastes 7:16).
O versículo acima causa certa estranheza. Afinal, não conseguimos imaginar, por exemplo, que quando Paulo disse que devemos seguir a justiça (I Tm. 6:11), estava querendo dizer “siga a justiça, mas não tão de perto”. Ou quando afirmou que devemos ser cheios do fruto da justiça (Fp. 1:11), queria expressar: “sejam cheios, mas não tanto”. Certamente, a fala de Paulo não comporta esse tipo de interpretação. O apóstolo não apresenta nenhum limite a ser observado quando seguimos a justiça ou quando damos seus frutos . Além disso, ele é claro ao ensinar que devemos oferecer nossos membros a Deus como instrumentos de justiça (Rm. 6:13), e que, tendo sido ressuscitados com Cristo, agora somos escravos da justiça (Rm. 6:18).

A instrução “não sejas demasiadamente justo” fica ainda mais estranha quando observamos a forma como Jesus é tão absoluto e incisivo quanto às condições para seguí-lo. Para seguir Jesus, é necessário renunciar a tudo (Lc. 14:33).  Não basta renunciar “quase tudo”. Da mesma forma, é preciso amar a Jesus acima de todas as pessoas (Lc. 14:26). Não basta amá-lo “acima da maioria”. Jesus sempre apresenta de forma tão absoluta as condições para seguí-lo que ficamos ainda mais inquietos com a aparente “flexibilidade” de Eclesiastes 7:6 – “não seja excessivamente justo”.

O que o texto de Eclesiastes 7:6 teria a nos ensinar? Seguramente, a leitura desse versículo desperta interrogações como: o que é ser demasiadamente justo? Existe algum limite para a prática da justiça? Uma pequena dose de injustiça na vida é saudável? Por que é ruim ser exageradamente justo? Qual é o limite que, uma vez ultrapassado, faz com que um justo se torne demasiadamente justo?

A leitura de todo o livro de Eclesiastes pode ser esclarecedora para compreender o versículo em análise. A partir da leitura do livro, concluo que o “ser excessivamente justo” não se refere à intensidade com que uma pessoa pratica a justiça. Não se relaciona ao quanto um indivíduo exige de si mesmo uma conduta justa e reta. O livro de Eclesiastes deixa claro que é um dever exigir de nós mesmos uma conduta justa (Ec. 12:13,14). O exageradamente justo não é aquele que exige justiça de si mesmo, mas sim o que exige ser tratado conforme a sua própria justiça. O limite entre ser justo (que é um dever inegociável) e o ser “exageradamente justo” é ultrapassado quando uma pessoa não só pratica a justiça, como também exige ser tratada na vida segundo sua justiça.

Duas razões muito simples me fazem chegar à essa conclusão. A primeira é o contexto apresentado pelo livro de Eclesiastes, e a segunda é a vida de Jó, um homem que, de tão exageradamente justo, pretendia ser mais justo do que Deus (Jó 32:3).

Quanto ao contexto do livro de Eclesiastes, é necessário perceber que exatamente no versículo anterior a Ec. 7:16, o autor chama a nossa atenção para o fato de que o justo sofre apesar da sua justiça, e o ímpio prospera apesar de sua impiedade:

“Nesta vida sem sentido eu já vi de tudo: um justo que morreu apesar da sua justiça, e um ímpio que teve vida longa apesar da sua impiedade. Não seja excessivamente justo nem demasiadamente sábio; por que destruir-se a si mesmo?” (Eclesiastes 7:15,16).

Em outras palavras: já que o justo sofre, apesar de sua justiça, e o ímpio prospera, apesar de sua impiedade, então não tenha uma exigência de justiça tão elevada que te impeça de lidar com essa realidade, pois isso te destruiria.

Esse fato é destacado em Eclesiastes 8:14 e 9:2:

“Há mais uma coisa sem sentido na terra: justos que recebem o que os ímpios merecem, e ímpios que recebem o que os justos merecem. Isto também, penso eu, não faz sentido” (Ec. 8:14).

“… O que acontece com o homem bom, acontece com o pecador; o que acontece com quem faz juramentos, acontece com quem teme fazê-los” (Ec. 9:b2).

O que o autor de Eclesiastes deseja nos ensinar, é que o justo não deve esperar ser tratado pela proporção da sua justiça. Nem tudo funciona na base da exata retribuição.

A conclusão a que cheguei sobre Eclesiastes 7:16 é fortalecida pelo o que se observa na vida de Jó. Esse homem era justo, fato que é destacado por Deus. Contudo, ao passar por intensa dor, sofrimento e agonia, Jó começa a questionar Deus, exigindo que fosse tratado segundo sua própria justiça.

“Bem sabes tu que eu não sou culpado; todavia, ninguém há que me livre da tua mão” (Jó 10:7).

“Quantas culpas e pecados tenho eu? Notifica-me a minha transgressão e o meu pecado. Por que escondes o rosto e me tens por teu inimigo?” (Jó 13:23,24).

“Tão certo como vive Deus, que me tirou o direito, e o Todo-Poderoso, que amagou a minha alma, enquanto em mim estiver a vida, e o sopro de Deus nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça, nem a minha língua pronunciará engano. … À minha justiça me apegarei e não a largarei; não me reprova a minha consciência por qualquer dia da minha vida” (Jó 27:2-6).

“Tomara eu tivesse quem me ouvisse! Eis aqui a minha defesa assinada! Que o Todo-Poderoso me responda! Que o meu adversário escreva a sua acusação!” (Jó 31:35).

Jó acusa Deus de ter lhe negado direito, afirma que manterá sua integridade, e exige explicações de Deus. Seu senso de justiça era tão elevado, que já não só a exigia de si mesmo, como também exigia que Deus lhe retribuísse segundo sua justiça. Por isso que Jó pretendia ser mais justo do que Deus, ou seja, ele era exageradamente justo.

“Então, se acendeu a ira de Eliú, filho de Baraquel, o buzita, da família de Rão;acendeu-se a sua ira contra Jó, porque este pretendia ser mais justo do que Deus” (Jó 32:2).


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Qual é o erro de ser demasiadamente justo?

Uma vez definido o conteúdo da expressão “exageradamente justo”, cabe a partir desse momento uma breve reflexão acerca dos principais equívocos que podem marcar a vida dessas pessoas.

1 – O demasiadamente justo não entende o propósito de Deus em nos transformar.

Uma pessoa exageradamente justa não consegue enxergar propósito em seu sofrimento. Ao passar pela dor logo pensa: “eu não mereço sofrer assim”. Foi isso o que aconteceu com Jó.

Contudo, é necessário entender que Deus tem um projeto eterno, de nos transformar segundo o caráter de Seu Filho, Jesus. E para levar adiante esse projeto, ou seja, para nos fazer parecidos com Jesus, o Pai utiliza todas as coisas, inclusive o sofrimento. Muitas vezes não entendemos o “porquê” do sofrimento, mas precisamos estar seguros do “para quê”, a nossa transformação.

A pessoa exageradamente justa, ao passar pela dor, está sempre buscando entender o “porquê”, e não consegue enxergar o “para quê”, o propósito.

No caso de Jó, após sua provação, alcançou um coração transformado, e enxergou que, apesar de toda a sua retidão, ele ainda não conhecia o coração de Deus.

“Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42:5,6).

2 – O demasiadamente justo pode se negar a ser um canal por onde a graça (favor imerecido) de Deus flui e alcança as pessoas.

Por exigir ser tratado por sua justiça, o exageradamente justo começa a tratar as pessoas conforme a justiça delas. Sua lógica funciona na base da meritocracia. Por isso, ele não consegue entender que o Pai faça festa para o filho pródigo que retornou (Parábola do filho pródigo – Lc. 15:11-32). Nem mesmo compreende que uma pessoa que trabalhou apenas 1 hora receba a mesma quantia recebida pelos que trabalharam o dia inteiro (Parábola dos trabalhadores da vinha – Mt. 20:1-16).

Enfim, o demasiadamente justo não tem revelação da graça de Deus. Seu senso de justiça própria impede a compreensão da graça, e o bloqueia a agir com graça em relação aos outros.

Portanto, sem negociar a santificação, pois sem ela ninguém verá o Senhor (Hb. 12:14), não caiamos na armadilha de sermos demasiadamente justos, compreendendo sempre o papel do sofrimento na nossa transformação, e mantendo sempre o coração aberto para o fluir da graça de Deus em relação ao nosso próximo.

Em Cristo,

Anderson Paz
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